O zika vírus é temido pela capacidade de exterminar células neurais, característica que pode causar microcefalia e outras más-formações cerebrais em fetos de gestantes infectadas. Pesquisadores internacionais transformaram esse mecanismo negativo em vantagem no tratamento de tumores cerebrais.
Eles retardaram o desenvolvimento do glioblastoma, um câncer severo e incurável, em ratos usando uma vacina cuja fórmula tem parte do genoma do zika. Os resultados foram animadores e sinalizam que a abordagem pode ser preventiva e também usada para aumentar a sobrevida de paciente oncológicos.
O glioblastoma é um câncer cerebral que, quase sempre, retorna após a retirada cirúrgica e outros tipos de terapia. Especialistas explicam que uma das principais razões para a recorrência rápida e inevitável desse carcinoma é a presença de células-tronco residuais de glioblastoma após as intervenções. “As células-tronco cancerígenas são resistentes à terapia atual, incluindo radiação e quimioterapia. Assim, o desenvolvimento de uma terapia eficaz para eliminá-las é algo urgentemente necessário”, detalha ao Correio Pei-Yong Shi, virologista do Departamento de Medicina da Universidade do Texas (EUA), e líder do estudo, publicado na revista mBio. A pesquisa contou com a participação de pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências Médicas Militares.
Como o zika infecta células progenitoras de neurônios em cérebros fetais, Pei-Yong Shi e a equipe decidiram testar se o patógeno poderia ser usado para infectar e matar seletivamente as células-tronco de glioblastoma que contribuem para a recorrência do câncer. “Fizemos a conexão de que, talvez, esse vírus também pudesse infectar as células de glioblastoma porque elas têm propriedades similares às células-tronco neurais”, conta o cientista.
O primeiro passo dado pela equipe consistiu em determinar se existia uma maneira segura de usar o vírus zika para atacar apenas as células cancerígenas, ou seja, sem atingir células neurais saudáveis. Para isso, eles desenvolveram um vacina com uma pequena parte do vírus, que foi chamada ZIKV-LAV. A estratégia é parecida com a usada, por exemplo, em vacinas contra a dengue e febre atenuada, que usam o vírus atenuado para induzir a produção de anticorpos.
Quando a equipe injetou ZIKV-LAV no cérebro de camundongos, não foram observados efeitos negativos na saúde das cobaias, como perda de peso, anormalidades comportamentais, perda de apetite, depressão, letargia ou autolesão. Os animais também responderam normalmente em testes de ansiedade e função motora.
Em uma segunda etapa, os pesquisadores implantaram células de glioblastoma humano nos ratos que receberam a vacina ZIKV-LAV. Dessa vez, os roedores apresentaram atraso significativo no desenvolvimento do tumor. Além disso, houve prolongamento do tempo médio de sobrevivência dos roedores para cerca de 50 dias, contra 30 dias em camundongos que receberam as células de glioblastoma humano, mas não foram vacinados. O aumento é de 66%.
Para entender os efeitos da vacina, os cientistas sequenciaram todas as mensagens de RNA expressas nas células cancerígenas dos ratos e descobriram que a fórmula usada desencadeou uma forte resposta antiviral nas células tumorais, induzindo à inflamação e, eventualmente, à morte delas. “Nesse estudo, demonstramos que uma vacina com um vírus enfraquecido, que não é mais capaz de causar doenças em humanos, pode infectar e matar seletivamente células-tronco de glioblastoma humano. O tratamento com a vacina contra zika pode diminuir o crescimento do tumor e prolongar a sobrevida do camundongo”, ressaltou Pei-Yong Shi.
Ação combinada
A equipe acredita que a vacina poderá ser usada com as abordagens já adotadas. “Os resultados sugerem que o vírus zika modificado pode ter o potencial de ser usado em uma combinação com a atual terapia contra o glioblastoma, incluindo cirurgia, radiação, quimioterapia e imunoterapia”, completa o líder do estudo.
Rodrigo Nery, neuro-oncologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, destaca que o estudo internacional utiliza uma linha de pesquisa que tem sido bastante explorada na área oncológica. “Temos pesquisadores brasileiros que estudam o uso do zika no tratamento do meduloblastoma em crianças e outros estudos voltados para tumores também cerebrais que utilizam o vírus da herpes e o rinovírus”, detalha.
Apesar de promissora, a abordagem, segundo Rodrigo Nery, precisa ser aprofundada, já que o estudo liderado por Pei-Yong Shi é muito inicial. “São resultados interessantes, mas que precisam ser mais explorados, algo que demorará muitos anos ainda. É importante deixar isso claro para não dar falsas expectativas aos pacientes”, frisa.
O líder do estudo adianta quais serão as futuras etapas da pesquisa. “Nos próximos anos, ainda precisaremos entender por que o vírus zika tem essa capacidade de matar o câncer. Além disso, pretendemos melhorar a sua potência e segurança para o desenvolvimento clínico”, diz. “Como virologista, vejo que devemos aproveitar o ‘lado ruim’ dos vírus. Eles têm um papel a desempenhar no tratamento do câncer”, complementa.
Em se tratando de um carcinoma tão agressivo, o esforço dos cientistas é muito bem-vindo, ressalta Rodrigo Nery. “O glioblastoma é um tumor que ocorre em pessoas mais velhas. No Brasil, a estimativa é de 12 mil casos em 2018 e 2019. Ele não tem cura, geralmente um paciente quando diagnosticado tem apenas 14 meses de vida. Por isso, tratamentos que ajudem a prolongar a vida são importantes.”
Fonte: Correio Braziliense