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Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil

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Os desafios do cenário pós-Covid para a saúde brasileira

Das doenças negligenciadas às terapias inovadoras: a saúde será cada vez mais uma esfinge a desafiar o futuro dos países

A pandemia de Covid-19 expôs, de forma dramática, vulnerabilidades da saúde brasileira que, somadas às mudanças demográficas e epidemiológicas, ambientais e tecnológicas em curso, compõe um cenário que não pode ser mais desafiador. 

As políticas implementadas no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde podem contribuir de forma decisiva para reduzir a dependência brasileira e buscar a autossuficiência nacional na produção de medicamentos, insumos estratégicos e outros produtos para a saúde. 

Para tanto, o Brasil necessita de um conjunto arrojado de iniciativas que superem inconsistências que historicamente fragilizam o seu sistema de saúde. 

Os Laboratórios Farmacêuticos Oficiais, desde os anos 1800, contribuem para a saúde da população brasileira. Atualmente, fornecem centenas de milhões de doses de vacinas por ano, atendem a mais de 50% da demanda para HIV/aids e a 100% da demanda por soros em nosso país.  

Reúnem capacidade produtiva de mais de seis bilhões de unidades farmacêuticas/ano para o tratamento de doenças como o câncer, hepatite viral, hipertensão e diabetes, tuberculose, hanseníase e malária, além de fornecer mais de 30 reativos para diagnóstico de doenças transmissíveis.  

Vinculados a governos estaduais, municipais e federal, às forças armadas e às universidades, eles atuam como instituições da administração pública direta, autarquias, fundações e sociedades de economia mista, empregando uma força de trabalho constituída por 8.500 profissionais, dos quase 600 são mestres e 500 doutores.  

São também referências em ensino, pesquisa, desenvolvimento e inovação e já industrializam mais de 100 produtos frutos de transferências tecnológicas, como é o caso das vacinas contra o SARS CoV-2: Oxford/AstraZeneca/Fiocruz e Sinovac/Butantan (CoronaVac), comprovando, mais uma vez, sua capacidade técnica, científica e fabril para proteger a população brasileira diante de uma crise sanitária sem precedentes.  

Ao custo da perda de aproximadamente 700 mil vidas, quadro para o qual contribuíram a escassez de respiradores, máscaras e medicamentos utilizados na terapia intensiva, a Covid-19 tornou mais evidente a extrema dependência do Brasil na produção de diversos medicamentos, Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) e de outros produtos para a saúde, necessitando da importação em larga escala, principalmente de países asiáticos, europeus e dos EUA, como comprova a série histórica da balança comercial brasileira no setor saúde.  

De modo figurativo, é como se o Sistema Único de Saúde (SUS) tivesse crescido manco de uma das suas pernas: enquanto amplia a demanda pelos serviços e tratamentos de saúde, a oferta da sua base produtiva e tecnológica permanece encurtada, gerando um desequilíbrio sistêmico que resulta em déficits vultosos, quando comparados o volume de importação e de exportação realizados.  

A face mais grave e desumana que daí resulta é o contínuo desabastecimento na assistência farmacêutica, que compromete o fornecimento de fármacos para as chamadas doenças negligenciadas e drogas órfãs, bem como de analgésicos, antibióticos e corticoides, conforme comprova o painel Monitora AF, do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).  

Essa pesquisa, que coleta dados contínuos das redes municipais de saúde e é realizada em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), revela que a dificuldade de acesso às matérias-primas é uma das principais causas para essa crise constante que afeta os municípios brasileiros.  

Na outra ponta, essa dependência tecnológica dificulta a incorporação de novas terapias aos elencos do SUS, contribuindo para a judicialização do direito à saúde e agravando a crise financeira e orçamentária dos entes federados que necessitam prover assistência integral aos mais de 210 milhões de habitantes do Brasil.  

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Defendemos que algumas senhas nos permitem acessar um cenário qualitativamente superior para a saúde brasileira. Vamos a elas.  

O Complexo Industrial da Saúde é formado por diversas cadeias produtivas e, neste texto, a nossa atenção estará voltada para a sua base química e biotecnológica, que é formada por um conjunto de empresas públicas e privadas e de economia mista que devem estar integradas, complementando-se por meio de relações sinérgicas entre si.  

A primeira decorrência dessa abordagem sistêmica é que o setor farmoquímico e biotecnológico demandam uma planificação que assegure linhas de financiamento orientadas pelas necessidades de saúde da população brasileira.  

O poder de compra estatal, sempre de forma republicana e transparente, deve se voltar para essas prioridades apontadas por cenários epidemiológicos construídos com base em evidências científicas e a demanda real de cada produto indicada pelas séries históricas de aquisições dos três níveis de gestão do SUS. 

Os investimentos, em decorrência, devem ser realizados a partir da lógica de construção de uma rede de pesquisa e desenvolvimento, fabril e logística capaz de atender às demandas atuais e projetadas, considerando a diversidade regional e ambiental do nosso país, que, não custa lembrar, apresenta dimensões continentais.  

A maior parte desses investimentos é de longa maturação, portanto, um segundo conjunto de condições para o desenvolvimento do Complexo da Saúde é a estabilidade jurídica, a garantia de mercado consumidor e a segurança em relação ao cumprimento de preços e prazos contratualmente assumidos.  

O ambiente macroeconômico propício envolve política fiscal e aduaneira, cambial e monetária que assegurem custos de produção para nossa indústria farmoquímica e biotecnológica em patamares de competitividade internacional. 

A estrutura da base química e biotecnológica do Complexo da Saúde pode ser vista em formato de uma espiral que tem em sua base a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação. Estas, por sua vez, podem ser acionadas por meio de dois gatilhos: as linhas de financiamento para pesquisas (inclusive em parcerias multinacionais) e os processos de transferência e internalização de tecnologia, que no Brasil foram viabilizadas a partir de 2008 por meio das PDPs.  

Em ambos os casos, é fundamental que as universidades e os institutos de pesquisa sejam robustecidos, formando equipes cada vez mais qualificadas e atualizadas. Que contem com a mesma estabilidade jurídica e financeira da indústria. Que estejam conectados às necessidades de saúde da população brasileira, expressas por meio da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), dos Componentes Básico, Estratégico e Especializado da Assistência Farmacêutica, do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e pela Comissão de Incorporação de Tecnologias ao SUS (Conitec).  

Os nossos centros de pesquisa precisam se abrir cada vez mais ao mundo e às necessidades reais da população, aproveitando a riquíssima diversidade regional e ambiental do Brasil. O salto do desenvolvimento biotecnológico brasileiro passa, sem sombra de dúvida, pela apropriação dos acervos genéticos dos nossos biomas, gerando novos fármacos, também voltados para terapias complementares e alternativas.  

Caberá aos ministérios, por meio dos órgãos e bancos de fomento, oferecer linhas de financiamento que viabilizem o desenvolvimento e a inovação a partir das pesquisas básicas e aplicadas. Essa conexão entre a geração do conhecimento científico e a entrega de produtos ao mercado é um dos elos mais frágeis das nossas cadeias de desenvolvimento tecnológico.  

A regulação é um capítulo à parte que influencia, em diversos aspectos, a construção desse cenário qualitativo superior para a saúde brasileira. Alguns são sempre mais lembrados, como a redução de prazos para concessão de patentes e os trâmites rápidos (fast tracks) para o registro de produtos que constam das listas estratégicas para o SUS.  

Também é preciso ter em vista que os Laboratórios Farmacêuticos Oficiais atuam como importantes reguladores de preço do mercado nacional, fato, inclusive, já demonstrado em estudos e pesquisas.  

Por este e outros motivos, eles necessitam de um Marco Legal que reconheça as suas necessidades jurídicas e mercadológicas específicas e que contemple uma Governança Colaborativa da Rede Pública de Laboratórios, vindo a assumir responsabilidades claras, incluindo metas de produção e qualidade expressas em compromissos com a certificação em conformidade (compliance) a Boas Práticas de Fabricação (BPFs).  

Para estarem cada vez mais aptos a defender os interesses da população brasileira e a liderar a conquista incessante de maior autonomia e menor dependência tecnológica e produtiva, os Laboratórios Farmacêuticos Oficiais, ao lado do setor produtivo nacional, necessitam construir plataformas de gestão e operação inovadoras, que respondam com agilidade às demandas do mercado e permitam a atualização das suas plantas fabris e atuem constantemente na preparação das suas equipes multiprofissionais.  

A saúde será cada vez mais uma esfinge a desafiar o futuro dos países. Nesse sentido, o Brasil enfrenta um desafio singular pois, se ousou criar o maior sistema público e universal de acesso à saúde, necessita, neste momento histórico, dar um outro salto, assegurando, por meio do fornecimento regular e contínuo a essa complexa rede nacional de atenção à saúde, a sustentabilidade propriamente dita do SUS. Ele que é o nosso passaporte civilizatório em um cenário turbulento, no qual as ameaças de novas crises sanitárias de magnitude desconhecidas são reais e concretas.  

Link para matéria original: www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-desafios-do-cenario-pos-covid-para-a-saude-brasileira-27042023